Coringa: a loucura como resposta à indiferença

 

Gaveta obscena é exatamente o lugar onde eu deveria ter chegado um dia. Talvez, eu já estivesse aqui, antes mesmo de criá-lo. Toda criação vem de nós e parece nos preceder. A criação me domina. Pertenço ao que imagino. Psicanalistas, poetas, cinéfilos, artistas de um modo geral, entusiastas de uma boa conversa insana regada a litros de café, vinho barato e atos falhos, deite-se comigo em meu divã imaginário e sinta-se mais do que à vontade.


O filme Coringa, de Todd Phillips, estrelado por Joaquin Phoenix, é muito mais do que um belo poema cinematográfico sobre a loucura. É uma feroz crítica ao sistema e às instituições. As instituições que deveriam proteger os cidadãos, os ignoram. O sistema apresenta a lógica psicopata.

O filme parece defender a ideia de que apenas a lógica psicótica pode combater à lógica psicopata, pois a primeira é amorosa e criativa apesar de violenta. A segunda é só violenta, mas não suja as mãos.

O comediante Arthur Fleck parece simbolizar a força devastadora daqueles sem voz nem vez na sociedade. Humilhado e desprezado por quase todos que passam por seu caminho, começa o filme sendo espancado por um grupo de delinquentes juvenis, meninos sádicos que fazem o mal pelo mal.

Por causa de uma intriga perde seu trabalho como palhaço e devido à cortes de verba do governo fica sem acesso aos seus medicamentos psiquiátricos. No ambiente doméstico, tenta cuidar bem de sua mãe, que futuramente ele descobre ser paranoica e negligente.

O rapaz ingênuo e infeliz do começo do filme, portador de uma estranha patologia que faz a pessoa rir compulsivamente nos momentos mais inadequados, torna-se um ícone da luta de classes. Milhares de homens pobres, cidadãos comuns , tachados de palhaços pelo poderoso empresário e candidato a prefeito Thomas Wayne, começam a usar máscaras circenses e a cometer atos de vandalismo inspirados pelo palhaço que assassinou três jovens de classe alta e pelo ódio reprimido durante uma vida de ostracismo.

Muitos personagens do filme são arquetípicos. Temos o empresário e candidato a prefeito representando o encontro dos poderes econômico e político. Temos o famoso apresentador de TV representando o mais nefasto do poder midiático. A entediada assistente social que atende Arthur de forma desumanizada pois ela mesma se reconhece como uma ignorada pelo sistema. A bela vizinha representando uma possibilidade de bondade e amor num mundo em que todo mundo é rude, como disse o próprio Arthur. Os homens mascarados de palhaço representam a massa de desprezados e Arthur, o poder revolucionário da loucura.

Uma cena igualmente poética e sombria do filme é quando Arthur brinca com uma criança no ônibus e a mãe do menino se irrita. Nesta cena, podemos perceber claramente como é complexo tentar fazer rir num mundo em que todos estão contaminados pelo medo e pelo ódio. Muito mais do que um filme sobre heróis e vilãos, violência e loucura, Coringa mostra os efeitos devastadores da indiferença.


Este artigo foi publicado no blog Prensa.


No meu blog Gaveta obscena vou divulgar textos variados de minha autoria, de diversas categorias. Entre elas: críticas fílmicas, contos, devaneios poéticos e artigos sobre comportamento.


Sou psicanalista, professora, escritora, atriz e doutora em Comunicação e Semiótica. Fundei a empresa Sílvia Marques Produções Artísticas Independentes, responsável por oferecer cursos na área de Humanidades e montar  minhas peças teatrais.

Ofereço sessões de terapia acolhedoras e online, mentoria de autodesenvolvimento e formo psicanalistas. 

Publiquei 10 livros individuais, participei de 11 coletâneas, as quais organizei três. Venci sete concursos literários, fui indicada ao prêmio Jabuti em 2013. Mais de 500 artigos de minha autoria circulam por blogs variados. 


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