Desejo em primeira pessoa
Gaveta obscena é exatamente o lugar onde eu deveria ter chegado um dia. Talvez, eu já estivesse aqui, antes mesmo de criá-lo. Toda criação vem de nós e parece nos preceder. A criação me domina. Pertenço ao que imagino. Psicanalistas, poetas, cinéfilos, artistas de um modo geral, entusiastas de uma boa conversa insana regada a litros de café, vinho barato e atos falhos, deite-se comigo em meu divã imaginário e sinta-se mais do que à vontade.
Visto minha calcinha vermelha de rendas meio esgarçadas. Sei que preciso comprar calcinhas novas, mas não me afobo. Ainda tem muito vinho na geladeira e me deixo levar pela preguiça do dia. Aprendi a não ter pressa. A não ser quando boto uma lasanha para assar ou preciso escutar música. Sim, aí tenho pressa. Abro a porta do forno esperando as primeiras borbulhas aparecerem. Sim, aí tenho pressa. A propaganda chata retardando cinco segundos o gozo de ouvir a música que ecoa em minha cabeça. Para o resto, deixo rolar. Mentira! Sou uma dissimulada. Forjo as minhas emoções. Forjo a mim mesma e vou mudando o ângulo da câmera que filma a minha vida ao meu bel prazer, quando quero, quando imagino ser conveniente, quando soa bonito e poético, quando a dor fica aguda demais, quando o desfecho parece muito banal, como quem dança sozinha e nua ao som de I will survive, como quem enjoa depois de misturar nas festas de fim de ano pernil gorduroso, farofa, espumante excessivamente doce e mágoa.
Sou uma militante de internet, luto por causas que não são minhas porque não quero olhar para as minhas próprias feridas. Estou mentindo de novo! Olhar para o que me aflige é o meu hobby favorito. Adoro cutucar casquinhas de ferida. Um passatempo fascinante!
Preparo ovos fritos. Ovos sempre mudam a minha perspectiva sobre a vida. Tudo parece bem melhor depois de uma caneca com café forte e ovos fritos na manteiga, com a gema levemente mole. Cascata! Como ovos quase crus. Parei com este hábito. Não por consciência. Quando o assunto é alimentação, sou o ser menos consciente da face da Terra. Só não quero espalhar por uma maca de pronto-socorro um vômito amarelo de desespero. “Terei que fritar bem a gema!” Perco a vontade de comer o ovo e me contento com o café forte. Ele passa novamente a mão por meu seio, mas
desta vez olha em meus olhos e eu quase o desejo por hábito. Fazemos no sofá mesmo. Urgência? Não sei. Talvez, quem sabe. Nossos gestos ficam meio apertados, tenho medo de sujar o estofado novo. Sussurro em seu ouvido que quero terminar no banheiro. Se eu falasse de ir para a cama, ele saberia na hora que temo que o sofá fique sujo. Sugiro o banheiro então, banco a descolada, a mulher sexy demais que não suporta rotina, mas tudo que quero é que ele goze de uma vez. Nesta hora não sou dissimulada. Gemo baixinho, mordo meu lábio até inchá-lo de leve, mas alguma coisa falta e deixo isso claro. Não faço por crueldade. Acho feio mentir para quem amamos ou imaginamos amar. Só queria que ele compreendesse que o abraço que ele me dá depois vale mil vezes mais do que qualquer outra coisa. Digo isso com os olhos, com os gestos e com o meu silêncio, mas ele não acredita. Evito usar as palavras. Racionalizo demais. Minha voz sempre soa um pouco fria. Sempre parece que me importo menos do que realmente me importo. Ele me deixa brincar comigo mesma com um olhar sorridente e frustrado. Não importa tudo o que eu faço e sinto. A ausência do grito estridente anula todo o meu afeto. Me torno a maior das faturas sobre a mesinha de cabeceira. Me torno a mulher problema, mas estou bem. Lá no fundo, eu sei que estou bem e que estaria ainda melhor sem ele.
No meu blog Gaveta obscena vou divulgar textos variados de minha autoria, de diversas categorias. Entre elas: críticas fílmicas, contos, devaneios poéticos e artigos sobre comportamento.
Sou psicanalista, professora, escritora, atriz e doutora em Comunicação e Semiótica. Fundei a empresa Sílvia Marques Produções Artísticas Independentes, responsável por oferecer cursos na área de Humanidades e montar minhas peças teatrais.
Ofereço sessões de terapia acolhedoras e online, mentoria de autodesenvolvimento e formo psicanalistas.
Publiquei 10 livros individuais, participei de 11 coletâneas, as quais organizei três. Venci sete concursos literários, fui indicada ao prêmio Jabuti em 2013. Mais de 500 artigos de minha autoria circulam por blogs variados.
www.psicanalistasilviamarques.com
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