Frisson


Gaveta obscena é exatamente o lugar onde eu deveria ter chegado um dia. Talvez, eu já estivesse aqui, antes mesmo de criá-lo. Toda criação vem de nós e parece nos preceder. A criação me domina. Pertenço ao que imagino. Psicanalistas, poetas, cinéfilos, artistas de um modo geral, entusiastas de uma boa conversa insana regada a litros de café, vinho barato e atos falhos, deite-se comigo em meu divã imaginário e sinta-se mais do que à vontade. 


Deixei que acendesse o meu cigarro. Este era um
dos poucos mimos que me permitia depois que
tudo se foi. “O amor é uma fantasia”, disse-lhe com
o meu típico sorriso de canto de boca. Sabia que
ficava sexy com este sorriso. Sabia que ele poderia
vir a se apaixonar por causa dele. Senti cócegas na
alma. Sabia que aquele possível amor de nada valia,
nada significava. O meu melhor e o meu pior esta-
vam bem guardados. Até de mim mesma. Tudo que
podia me fazer digna de amor ou ódio, o que dá no
mesmo, estava há milênios de distância. Tudo que
podiam ver era aquele jeito meio vadio de olhar e
sorrir, as sardas nos ombros brancos, o batom ver-
melho levemente borrado depois das três taças de
vinho, uma mordiscada no lábio inferior, as pupilas
dilatadas pelo álcool e pelo desejo incontrolável de
ainda ser desejada. Olhei de esguelha para um casal
aparentemente apaixonado na mesa ao lado e expeli
a fumaça do cigarro com o típico tédio daqueles
que nada mais esperam do que a próxima taça de
vinho. Ele me fazia rir e era isso que me importava
no momento. O riso daqueles que compreenderam
que não existe um plano maior ou qualquer outra
coisa além daquela lassidão. Já não ria por desespero.
Somente ria. A vida era curta demais para mirabolantes expectativas. A vida era longa demais para ficar sem rir. O casal ao lado continuava aparentando amor e desta vez não ri. Um sorriso de canto de boca mais uma vez. Mas agora ele não vinha dos lábios e sim da alma.
Por um momento, entre um gole e outro, senti
saudade do tempo em que acreditei. Mas o gosto
azedo do resto de vinho abandonado no fundo da
taça me fez acordar para um riso que nada significava como a paixão que ele poderia vir a sentir por mim.
O seu olhar de desejo me encheu de preguiça.
Estou velha demais, cansada demais, lúcida, lúdica
demais para aquele olhar. Só queria um pouco de
ternura, um abraço com gosto de beijo no rosto, vai
ficar tudo bem, o quarto nem está tão escuro as-
sim, eu seguro a sua mão até você dormir. Só queria
um pouco de cumplicidade. “Eu sei quem você é.”
“Sabe?”, perguntaria com os olhos arregalados, mas
não pelo álcool. Só queria que alguém soprasse em
meu ouvido a minha grande verdade, meu segredo
sórdido. “Sou assim?” Poderia ficar aprisionada neste momento até o final de todas as minhas ressacas.
— Venha comigo, sussurrou com sua voz rouca,
no típico tom canastrão daqueles que deixaram de
acreditar em seu personagem. Sua voz exalava calor, mas seu olhar era vazio.
Senti o gosto azedo das lembranças que envelhe-
ceram vindo à tona junto com o refluxo provocado
pelo excesso de vinho.
— Não acreditamos nisso, disse com a voz minha
voz fria, no típico tom convincente daqueles que
acreditam em seu personagem. Minha voz exalava
pragmatismo, mas meu olhar transbordava como o
de uma criança pequena que treme e baba, desespe-
rada para reviver cada um de seus pesadelos.
— Somos poetas. Só sabemos falar sobre o amor.
Ombro para frente, cabelos no rosto, um ar matrei-
ro de quem tudo sabe e já sentiu e nada mais pode
afetar.
— Somos maduros. Poderemos fazer melhor o
que fizemos mal milhares de vezes.
O sorriso de canto de boca voltou mais cansado
do que nunca.
— Não venha me dizer que o pior já passou. O
pior está sempre por vir.
Não conseguia mais olhar para a taça de vinho
à minha frente. Em suas palavras, podia ver e tocar
tudo aquilo que não posso superar.
— Me chame para um vinho outra noite e ten-
te me beijar quando estiver bêbada demais para re-
lutar. Me chame para dar uma volta ao mundo ou
para escrever um livro a quatro mãos. Me peça para
ser sua melhor amiga, sua confidente, sua mentora.
Mas não me venha falar de amor. Se você tivesse
chegado uns 200 anos antes, talvez houvesse alguma chance. Não pretendia ser alguém melhor nem pior. Tampouco queria aprender algo.
— Estou cansada de aprender! Explodi numa úl-
tima risada.
Só queria um pouco de calor humano. Mas tudo
que sentia era o suor pegajoso escorrendo pelas costas nuas, o suor etílico e cínico daqueles que só podem rir e desejar.

O conto Frisson pertence ao livro Eu preciso contar...  

No meu blog Gaveta obscena vou divulgar textos variados de minha autoria, de diversas categorias. Entre elas: críticas fílmicas, contos, devaneios poéticos e artigos sobre comportamento.


Sou psicanalista, professora, escritora, atriz e doutora em Comunicação e Semiótica. Fundei a empresa Sílvia Marques Produções Artísticas Independentes, responsável por oferecer cursos na área de Humanidades e montar  minhas peças teatrais.

Ofereço sessões de terapia acolhedoras e online, mentoria de autodesenvolvimento e formo psicanalistas. 

Publiquei 10 livros individuais, participei de 11 coletâneas, as quais organizei três. Venci sete concursos literários, fui indicada ao prêmio Jabuti em 2013. Mais de 500 artigos de minha autoria circulam por blogs variados. 


www.psicanalistasilviamarques.com




Comentários

Postagens mais visitadas