A vida é uma viagem que não permite excesso de bagagem

Gaveta obscena é exatamente o lugar onde eu deveria ter chegado um dia. Talvez, eu já estivesse aqui, antes mesmo de criá-lo. Toda criação vem de nós e parece nos preceder. A criação me domina. Pertenço ao que imagino. Psicanalistas, poetas, cinéfilos, artistas de um modo geral, entusiastas de uma boa conversa insana regada a litros de café, vinho barato e atos falhos, deite-se comigo em meu divã imaginário e sinta-se mais do que à vontade. 


Depois que uma pessoa passa por uma perda terrível ou por sucessivas perdas medianas que a levam a um processo depressivo, em que a autoestima e a energia vital ficam reduzidas a pó, começa a pesar e a medir os valores que prioriza.

Durante o processo de reconstrução, lento e bem particular para cada pessoa, começamos a perceber o que realmente é importante para a nossa sanidade mental. O que realmente faz a vida valer a pena e ter sentido.

Vivemos cercados por pessoas, circunstâncias, compromissos sociais e de repente nada parece tão grande assim. Conforme os efeitos da depressão começam a diminuir, tudo ganha um gosto novo e começamos a jogar fora o que faz a mala pesar demais durante a nossa caminhada pelo mundo.

Quando nos perguntam o que é fundamental para nós, respondemos de forma mais ou menos similar a esta pergunta. Quando estamos superando um trauma e “trocamos” a pele da alma, já não conseguimos mentir para nós mesmos. E o que antigamente parecia urgente, não tem tanta pressa assim.

O que parecia importante, talvez o seja para a sociedade ou para pessoas que amamos e não para nós mesmos.

Fazemos descobertas incríveis ao passarmos por uma depressão. Quando estamos tentando vir à tona, sentimos que algumas pessoas e atividades são capazes de nos animar e aí descobrimos o nosso essencial.

O que me fez sorrir no meio desta tristeza toda? O que me fez sair da cama num dia em que me sentia no fundo do poço? O que me fez ir para a rua mesmo sem vontade alguma? Com quem eu quis me abrir? Quem me provocou uma risada? Qual atividade me fez esquecer o sofrimento mesmo que temporariamente?

Quando estamos bem, acumulamos uma série de preocupações supérfluas, assumimos compromissos que não queremos, investimos tempo, energia e dinheiro em coisas que não contribuem realmente para o nosso crescimento pessoal.

Sem querer vivemos de acordo com um script social. O script destinado às pessoas do nosso gênero, da nossa classe social, da nossa profissão etc.

E passado um tempo, podemos perceber também que antes do trauma, antes da perda terrível, já estávamos um pouquinho deprimidos e que certas situações que nos pareciam normais contribuíram para aumentar a nossa ansiedade, a nossa angústia.

Alguém se recuperando de uma depressão é um sobrevivente. E como todo aquele que se livra de um grande desastre, cheio de estragos, aprende a se defender mais e melhor de tudo aquilo que pode machucá-lo. Vou mais além. Aprende que poucas coisas e pessoas realmente valem para nós nesta vida. Aprende que bagagem boa é bagagem pequena.

Não me refiro a experiências e conhecimentos. Me refiro a protocolos sociais, a hábitos fúteis, excesso de preocupação com aquilo que os outros pensam e dizem, pavor de envelhecer, mania de querer que tudo aconteça do jeito que sonhamos ou planejamos, se valorar pelo olhar do outro, achar que tem direito a felicidade porque é uma boa pessoa.

Descobrimos que podemos ser uma boa pessoa, mas não precisamos ser perfeitos.
Às vezes pensamos que a nossa vida é como um trailer de cinema e que a qualquer momento, o filme vai começar. Na verdade, o trailer já era o filme e cabe a nós extrair o melhor dele, mesmo que tenhamos entrado na sala de projeção errada.


Este artigo foi publicado originalmente pela Obvious Magazine e replicado pelo blog Fãs da Psicanálise. 


No meu blog Gaveta obscena vou divulgar textos variados de minha autoria, de diversas categorias. Entre elas: críticas fílmicas, contos, devaneios poéticos e artigos sobre comportamento.


Sou psicanalista, professora, escritora, atriz e doutora em Comunicação e Semiótica. Fundei a empresa Sílvia Marques Produções Artísticas Independentes, responsável por oferecer cursos na área de Humanidades e montar  minhas peças teatrais.

Ofereço sessões de terapia acolhedoras e online, mentoria de autodesenvolvimento e formo psicanalistas. 

Publiquei 10 livros individuais, participei de 11 coletâneas, as quais organizei três. Venci sete concursos literários, fui indicada ao prêmio Jabuti em 2013. Mais de 500 artigos de minha autoria circulam por blogs variados. 


www.psicanalistasilviamarques.com



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