Druk: mais uma rodada ou somos todos adictos
Gaveta obscena é exatamente o lugar onde eu deveria ter chegado um dia. Talvez, eu já estivesse aqui, antes mesmo de criá-lo. Toda criação vem de nós e parece nos preceder. A criação me domina. Pertenço ao que imagino. Psicanalistas, poetas, cinéfilos, artistas de um modo geral, entusiastas de uma boa conversa insana regada a litros de café, vinho barato e atos falhos, deite-se comigo em meu divã imaginário e sinta-se mais do que à vontade.
Quando falamos em vícios, pensamos sempre no abuso de drogas lícitas e ilícitas. Vemos como viciado ou adicto aquele que consome excessivamente e apresenta uma relação de dependência com barbitúricos (remédios para dormir), álcool, cigarro, maconha e outras drogas mais pesadas.
Porém, a adicção vai muito além da dependência química em drogas lícitas ou ilícitas. De uma forma ou de outra, em graus diferentes, todos nós nos viciamos em algo: comida, café, refrigerante, limpeza, fofoca, trabalho, sexo, sono, cuidados com a beleza, televisão, religião etc
O filme Réquiem para um sonho, de Darren Aronofsky já havia trabalhado com maestria duas ideias muito importantes:
1. O vício não se restringe às drogas.
2. O vício é consequência, não causa. Cada um à sua maneira tenta preencher o vazio existencial que faz parte do ser humano de algum modo. Somos incompletos e nada no mundo pode alterar esta condição, nem sucesso, dinheiro, amor, filhos, casamento, espiritualidade etc
Druk: mais uma rodada vai além de Réquiem para um sonho. Associamos muito os vícios aos traumas e necessidade de esquecer o sofrimento. Porém, os vícios não servem apenas para tamponar o negativo. Muitas vezes, ele funciona como um mediador entre o que desejamos e o que nos permitimos. O vício pode funcionar como um meio de relaxar um pouco o superego (o nosso mais implacável juiz) em busca de uma existência menos opressora, mais criativa.
Porém, como tudo na vida, qualquer adicção traz consequências. O uso de drogas lícitas e ilícitas pode aprisionar e destruir se ganhar proporções excessivas. O mesmo vale para outros vícios que impedem a autonomia da pessoa e prejudicam tanto a saúde física quanto a emocional.
Druk: mais uma rodada, de Thomas Vinterberg, um dos idealizadores do movimento Dogma 95, realizou um filme musical, colorido e vibrante sobre as terríveis limitações da existência humana, por meio de quatro professores fartos de suas rotinas. A experiência que decidem fazer com o álcool foi um caminho para se reconectarem com o grupo e com eles mesmos.
Os professores poderiam ter escolhido algum outro instrumento para se reconectarem, mas por alguma razão, escolheram o álcool e cada um lidou de uma forma com esta decisão. O filme também apresenta um questionamento interessante em relação à cultura dinamarquesa e a sua relação com o abuso de álcool. Mais uma vez, se estabelece uma conexão entre prosperidade e uso de substâncias, que pode se tornar perigosa.
Independentemente da qualidade das escolhas, o grupo saiu do estado de paralisia, que leva muitas pessoas à análise. Uma cena que merece destaque é a de Martin, professor de História, pedindo aos alunos para optarem entre três candidatos. E sem saberem o nome referente a cada descrição, elegem Hitler.
Muitas vezes, quando optamos por caminhos moralistas, podemos eleger facínoras. A cena final também é um show à parte quando a figura do professor ao se jogar no rio, parece um pássaro alçando voo.
O grande mérito de Druk é apresentar um tema tão polêmico de forma não-moralista. Druk nos desperta acima de tudo para a questão da ética e para a necessidade de nos responsabilizarmos por nossas escolhas.
Este artigo foi publicado no blog Prensa.
No meu blog Gaveta obscena vou divulgar textos variados de minha autoria, de diversas categorias. Entre elas: críticas fílmicas, contos, devaneios poéticos e artigos sobre comportamento.
Sou psicanalista, professora, escritora, atriz e doutora em Comunicação e Semiótica. Fundei a empresa Sílvia Marques Produções Artísticas Independentes, responsável por oferecer cursos na área de Humanidades e montar minhas peças teatrais.
Ofereço sessões de terapia acolhedoras e online, mentoria de autodesenvolvimento e formo psicanalistas.
Publiquei 10 livros individuais, participei de 11 coletâneas, as quais organizei três. Venci sete concursos literários, fui indicada ao prêmio Jabuti em 2013. Mais de 500 artigos de minha autoria circulam por blogs variados.
www.psicanalistasilviamarques.com
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