Nem todas as mulheres querem ser mães: a Psicanálise precisa falar sobre isso

Gaveta obscena é exatamente o lugar onde eu deveria ter chegado um dia. Talvez, eu já estivesse aqui, antes mesmo de criá-lo. Toda criação vem de nós e parece nos preceder. A criação me domina. Pertenço ao que imagino. Psicanalistas, poetas, cinéfilos, artistas de um modo geral, entusiastas de uma boa conversa insana regada a litros de café, vinho barato e atos falhos, deite-se comigo em meu divã imaginário e sinta-se mais do que à vontade. 


Não ter o desejo respaldado socialmente pode gerar um sofrimento psíquico descomunal. Tudo o que foge ao desejo da maioria costuma ser desvalorizado, arremessando a pessoa numa espécie de ostracismo social. 

Mulheres que querem se tornar mães e não conseguem, têm o sofrimento respaldado no seio familiar e também no seio social. A medicina busca soluções cada vez mais eficazes para que estas mulheres tenham o seu desejo realizado. 

 Já uma mulher que não quer ser mãe, encontra estranhamento. Em alguns casos, julgamento. Casais sem filhos não são considerados uma família, além de serem tachados como egoístas e portadores de uma vida vazia.  Mas o que significa ter uma vida preenchida?  

Quem adentrou no universo psicanalítico sabe que temos um vazio constitutivo, uma falta de essência e todo preenchimento não passa de uma ilusão. Vamos pulando de desejo em desejo. Talvez, seja esta a natureza humana: ser desejante.  

Muitas pessoas para se defenderem de acusações explícitas e implícitas também se escondem atrás de argumentos padrão como a descrença no mundo, o medo da violência urbana, a escassez de recursos naturais e boas oportunidades de trabalho.  Muitos realmente não desejam a maternidade/paternidade por questões existenciais, por considerarem inaceitável ver um filho sofrer. Mas muitos outros lançam mão de argumentos altruístas para suportem a inevitável pressão social.  Pela crença popular não se encantar com a ideia de ter um filho é um sinal de anormalidade, falta de sensibilidade, egoísmo extremo, incapacidade de amar.  

Não comparecer ao aniversário de uma criança parece uma falta muito maior do que não comparecer ao aniversário de alguém na fase adulta. É muito mais simples recusar o convite para um vernissage do que para um chá de bebê.  Prontamente, muitos responderiam que os rituais ligados à maternidade e à paternidade são os mais importantes porque ter filhos é o desejo maior que existe. Mais do que isso: é o que justifica o estar no mundo.  

E a maternidade/paternidade daqueles que muitas vezes passam uma vida de privações materiais e crises existenciais para expor a sua verdade por meio da sua arte? A arte não seria também um desejo importante, uma justificava para estar no mundo?  Uma forma de criação e de ilusão de eternização como o desejo de ter filhos?  

Muitos fazem piadas sobre mulheres sem filhos, dizendo que elas se tornarão as loucas dos gatos. Encaram a relação com os animais como um paliativo, um substituto menor para compensar à não maternidade. Mas muitas pessoas preferem realmente o relacionamento com os animais.  Para muitos, a relação com os animais não é algo menor, é o que realmente promove este preenchimento ilusório.  

Existem também os pais e mães de grandes causas. Muitas pessoas preferem se dedicar a projetos ao invés de se dedicarem à criação de filhos. Obviamente, uma coisa não exclui a outra. Existem aqueles que conseguem e acima de tudo desejam conciliar maternidade/paternidade com outras grandes paixões. 

Podemos citar aqui também aqueles que elegem como amor principal o ofertado ao parceiro afetivo. Muitas pessoas jogam o melhor da sua libido no parceiro e consideram o amor erótico o mais importante.  Para muitas mulheres não é a maternidade que define o seu feminino, mas sim a sua relação erótica com o outro. 

Podemos ir além: citando a pesquisadora israelense Orna Donath, é equivocado acreditar que uma mulher está sempre entre a carreira e a maternidade. Ou opta-se por se dedicar ao trabalho ou aos filhos. A mulher deve ser livre para ter uma carreira comum e ainda assim não querer filhos.  Em resumo: ninguém deve ser obrigado a se dedicar a nada com paixão.  

Vale ressaltar aqui também o sofrimento das mulheres que se tornaram mães por pressão social ou do parceiro ou ainda imaginaram que queriam ser mães e depois se arrependeram.  Não por não amarem seu filho ou filhos, mas por perceberem que não se realizam neste papel. Estas mulheres precisam ser escutadas.   

Diferentemente da medicina que se centra nos males que acometem a maioria das pessoas, deixando em segundo plano ou até mesmo no esquecimento aqueles que apresentam um funcionamento diferente, a Psicanálise preza pela exceção. A cura pela palavra não ignora nenhum tipo de desejo e sofrimento, mas antes de tudo, em seus primórdios, se voltou para as exceções, para os considerados estranhos, para aqueles que não se integravam ao status quo, para aqueles que tinham algo a dizer, mas não possuíam ninguém para escutar devido à singularidade de seu desejo. 


Este artigo foi publicado no blog Prensa.


No meu blog Gaveta obscena vou divulgar textos variados de minha autoria, de diversas categorias. Entre elas: críticas fílmicas, contos, devaneios poéticos e artigos sobre comportamento.


Sou psicanalista, professora, escritora, atriz e doutora em Comunicação e Semiótica. Fundei a empresa Sílvia Marques Produções Artísticas Independentes, responsável por oferecer cursos na área de Humanidades e montar  minhas peças teatrais.

Ofereço sessões de terapia acolhedoras e online, mentoria de autodesenvolvimento e formo psicanalistas. 

Publiquei 10 livros individuais, participei de 11 coletâneas, as quais organizei três. Venci sete concursos literários, fui indicada ao prêmio Jabuti em 2013. Mais de 500 artigos de minha autoria circulam por blogs variados. 


www.psicanalistasilviamarques.com

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