O melhor lance ou a escolha pelo amor

Gaveta obscena é exatamente o lugar onde eu deveria ter chegado um dia. Talvez, eu já estivesse aqui, antes mesmo de criá-lo. Toda criação vem de nós e parece nos preceder. A criação me domina. Pertenço ao que imagino. Psicanalistas, poetas, cinéfilos, artistas de um modo geral, entusiastas de uma boa conversa insana regada a litros de café, vinho barato e atos falhos, deite-se comigo em meu divã imaginário e sinta-se mais do que à vontade. 


O cineasta italiano Giuseppe Tornatore, diretor do cult Cinema Paradiso, mais uma vez aposta no amor à arte em simbiose com o amor romântico em seu filme O melhor lance, de 2014.

Virgil Oldman, interpretado por Geoffrey Rush, é um leiloeiro de obras de arte, que mantém em sua casa, escondido atrás de um armário, um museu particular com diversas obras que retratam apenas mulheres. A coleção não funciona como um mecanismo de ostentação. Muito pelo contrário. Está escondida do mundo para deleite exclusivo de Oldman, que se senta confortavelmente numa poltrona para admirar suas mulheres estáticas.

Em Cinema Paradiso, Tornatore escolheu um jovem idealista que persegue o amor com destemor para protagonista. Jovem este apaixonado por cinema, que é uma arte temporal, é uma arte com movimento. Já em O melhor lance, o protagonista, como o próprio sobrenome diz, é um velho homem que aprecia pinturas, uma arte espacial, isto é, sem as noções de ritmo e de tempo.

Parece haver uma relação entre o tipo de arte apreciada com o tipo de amante que cada personagem representa.

Oldman acaba tendo seu mundinho perfeito e asséptico abalado pela misteriosa Claire (Sylvia Hoeks), uma jovem com sintomas de agorafobia. O homem que toca os objetos com luvas e prefere as mulheres dos quadros às reais, se vê num turbilhão de emoções ao tentar decifrar o que faz Claire se refugiar em um quarto.

Em uma cena muito significativa, quando Claire toma banho de banheira, perto de Oldman, ela mergulha o rosto na água após fazer uma confissão importante sobre o seu passado. A câmera foca em seu rosto, que se assemelha a uma pintura, a uma obra de arte extremamente bela, mas sem vida.

Porém, no final da trama, quando Oldman se recorda de Claire, ele pensa na mulher em movimento, na Claire que mantém uma relação sexual com ele e o apresenta ao mundo das mulheres de carne e osso, que choram, gemem, suspiram.

Ao final da trama, quando Oldman testemunha o golpe que ele sofreu, arquitetado por seu amigo e parceiro de trabalho Billy (Donald Sutherland) que utilizou como peça-chave Claire, que na verdade não se chama Claire nem é uma fóbica, ele opta pela mulher viva e abre mão das estáticas. Ao invés de ir à delegacia denunciar o roubo dos quadros, opta por viajar à Praga, mais especificamente para o restaurante Noite e dia, estabelecimento citado pela mulher sem nome como o único lugar em que ela foi feliz. O restaurante possui diversos relógios em movimento. Provavelmente, mais uma metáfora da escolha feita por Oldman.

Antes da falsa Claire, o tempo não existia para ele. A vida era linear. O amor colocou a sua vida em movimento. Os ponteiros começaram a girar e cada minuto passou a ser único.

O fato de o nome verdadeiro da personagem feminina não ser revelado pode ser visto como uma metáfora do aforismo de Lacan “a mulher não existe”. Ela não existe, mas é loucamente amada por suas lacunas. Oldman ama mais o que ele não sabe sobre ela.

Oldman, como perito em obras de arte, afirmava que há sempre algo de autêntico nas falsificações. O falsário não resiste e coloca sempre um pequeno detalhe pessoal nas obras que adultera. Por alguma razão, ele identifica que o detalhe autêntico da mulher sem nome é seu amor pelo restaurante Noite e dia em Praga. Por tal motivo, se hospeda num hotel próximo ao restaurante e decide esperá-la por tempo indeterminado, de forma semelhante a que o protagonista de Cinema Paradiso esperava Elena se apaixonar por ele, se colocando à frente da sua janela todas as noites.

Cinema Paradiso e O melhor lance caminham em sentidos opostos. Totó, que era dinâmico e se lançava no amor de peito aberto, na maturidade desiste do afeto das mulheres reais para cultuar a lembrança de um amor do passado, engessado em sua idealização, aprisionado por meio de um Super 8 com imagem gasta. Oldman começa o filme cultuando as mulheres dos quadros e no final vai atrás da de carne e osso.

Outro ponto de encontro entre os filmes são os personagens de Billy e o projecionista Alfredo vivido por Philippe Noiret: homens com espírito artístico, confinados a serem personagens coadjuvantes dentro do universo que amam: as artes plásticas e o cinema respectivamente.

A principal motivação de Billy para trair Oldman não foi o aspecto financeiro, mas sim reivindicar seu status de artista criador. Como seus quadros nunca foram valorizados por Oldman, Billy decidiu fazer uma falsificação tão bela, que até mesmo um perito não conseguiria perceber que estava sendo enredado num jogo e que a mulher amada não era uma jovem frágil e fóbica e sim uma atriz, portanto, uma falsária.

Porém, apesar dos seus artifícios, a mulher sem nome, em algum momento, se deixa afetar pelo homem obsessivo e no último encontro afirma que não importa o que aconteça, ela o ama. A adulteração virou arte. O amor da mulher sem nome se tornou o aspecto autêntico da obra de Billy. Mais do que isso: o amor foi colocado em movimento. Como na Gradiva, de Jensen, o amor vence a paralisia imposta pela idealização obsessiva.


Este artigo foi publicado no blog Prensa.


No meu blog Gaveta obscena vou divulgar textos variados de minha autoria, de diversas categorias. Entre elas: críticas fílmicas, contos, devaneios poéticos e artigos sobre comportamento.


Sou psicanalista, professora, escritora, atriz e doutora em Comunicação e Semiótica. Fundei a empresa Sílvia Marques Produções Artísticas Independentes, responsável por oferecer cursos na área de Humanidades e montar  minhas peças teatrais.

Ofereço sessões de terapia acolhedoras e online, mentoria de autodesenvolvimento e formo psicanalistas. 

Publiquei 10 livros individuais, participei de 11 coletâneas, as quais organizei três. Venci sete concursos literários, fui indicada ao prêmio Jabuti em 2013. Mais de 500 artigos de minha autoria circulam por blogs variados. 


www.psicanalistasilviamarques.com


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